ILUMINEMOS PEQUIM

Todo esse clima de eleição, política, discussões sobre ética, etc, me fizeram lembrar da saudosa revista “Chiclete Com Banana” do Angeli, lembram? Quem achou que tem alguma relação com o grupo de axé-music (arghh!!!) enganou-se redondamente... A Chiclete era uma revista de humor anárquico que circulou lá pelos idos dos anos 80... Bem, a hístória dela fica para outro post... prometo uma entrevista com o próprio Angeli... aguardem! Por hora, vou publicar um conto da série que fez muito sucesso naquela revista: “Contos Corruptos”. Este conto foi escrito pelo chinês Ka-Lao-Yeh e é uma pérola do humor político. Como já disse o filósofo: existem coisas que não mudam jamais...
ILUMINEMOS PEQUIM!

Um dia, não há ainda muitos anos, enquanto o gélido vento do norte arremetia contra as janelas do mais fechado palácio da Cidade Proibida, assobiando por entre as decorações de lacre e as pilastras de mármore, e fazendo tinir as sinetas de porcelana do telhado, toda a corte se reuniu no salão das audiências imperiais.
O vento que soprava de fora não podia penetrar no interior da “Grande Corte de Esplendor”, porque havia, estendidos por todos os cantos, pesados cortinados escarlates e dourados; a fumaça dos trípodes de bronze subia quase que verticalmente, misturando-se no alto com a fumaça dos cinqüenta braseiros de porcelana.
A sala estava repleta de dignitários: mandchus de rosto ufano e forte, chins de rabicho comprido, e, aos lados de um cortinado amarelo, os guerreiros mandchus da primeira das oito Bandeiras, com suas armaduras lavradas.
De improviso o Filho do Céu apareceu, e todos caíram de joelhos, batendo a fronte no chão, enquanto pela sala se ouvia murmurar: “Celestial Presença”, “Augusta Sublimidade”, “Eterna Serenidade”.
O Imperador sentou-se no trono, e assim falou:
A nossos ouvidos chegou a voz de que as grandes cidades habitadas pelos bárbaros de pele branca, quando a noite desenrola das alturas do céu os véus da sombra, são iluminadas por milhares de luzes em cada rua e em cada praça.
Em seguida chamou:
Ta-Ti-Po!
O Camareiro-mor, ouvindo seu nome, apressadamente se ajoelhou no primeiro degrau do trono, fitando a sua plaquinha de jade, porque era pecado olhar no rosto do Filho do Céu.
Ta-Ti-Po, tomai do nosso Tesouro um milhão de taéis, e que as ruas de Pequim sejam iluminadas como pela luz do sol.
A Cidade será iluminada — respondeu o Camareiro-mor.
Executado o “kotow”, Ta-Ti-Po abandonou a audiência imperial. Na antecâmara vestiu o traje de arminho e seda e, quase não fazendo caso das reverências com que o obsequiavam, dirigiu-se ao escritório. Ali o esperava o seu ajudante.
Chame o Grande Eunuco — ordenou.
Tomando o cachimbo de água, pôs-se a fumar. À segunda tragada, uma montanha de carne assomou na sala: era o Grande Chefe dos Eunucos.
Saiba, Grande Chefe dos Eunucos, que o Filho do Céu (que reine por mil anos), pela alta bondade de sua alma, me entregou quinhentos mil taéis a fim de que as ruas de Pequim resplandeçam à noite como de dia. Que as ruas da Cidade sejam portanto imediatamente iluminadas.
Ouvir é obedecer! — respondeu o outro, inclinando-se e cumprimentando, conforme o ritual.
O Grande Eunuco atravessou a Cidade Proibida, voltando a seu pavilhão, e ordenou ao secretário que chamasse o Governador Militar. Esperou longamente. Tao-Tai, o Governador Militar, morava na Cidade Externa, e era preciso percorrer várias ruas e fazer abrir várias portas, antes que o valente e poderoso mandchu pudesse chegar à sua presença.
O Augusto Imperador — disse o Grande Eunuco — em sua magnanimidade, estabeleceu duzentos e cinqüenta mil taéis para que as ruas de Pequim sejam iluminadas à noite. Providencie!
O Filho do Céu só concebe o que é justo. Nossa Cidade será a maior do mundo. Apresso-me a executar a vontade do Filho do Céu — respondeu o Governador Militar, que voltou imediatamente a seu yamen e mandou chamar o Chefe dos Magistrados.
Quando este, ainda ofegante pela longa corrida, foi admitido à sua presença, disse-lhe:
Tenho o prazer e a honra de informar Vossa Excelência que a Sublime Serenidade, o Filho do Céu, resolveu gastar cem mil taéis para que Pequim seja iluminada à noite. Vossa Excelência providencie.
Obedeço incontinenti — foi a resposta.
E subindo no palanquim, o Chefe dos Magistrados fez-se levar ao escritório dos Vigilantes da Cidade. Entrou. Sem responder sequer às saudações dos inferiores, disse ao Chefe dos Vigilantes:
O Filho do Céu deu-me cinqüenta mil taéis para que Pequim seja iluminada à noite. Providencie até amanhã ou receie o seu rigor!
Grande foi a surpresa da população de Pequim quando deparou, na manhã seguinte, com este manifesto, afixado por todos os cantos da cidade:
A Serena Sublimidade, o Filho do Céu, o Augusto Imperador, Soberano do Império do Meio, Senhor dos Países Bárbaros, Vassalos e Tributários, decretou que todas as ruas e praças de Pequim sejam e permaneçam iluminadas desde a primeira hora da noite até o romper da aurora.
Portanto todo chefe de família, todo artesão, todo mercador providenciará para que seja aceso um lampião fora da porta externa de sua casa, de sua oficina, de sua loja.
Perderá a vida quem transgredir a ordem, que será cumprida com o máximo rigor”.
E foi assim que o Imperador, na noite seguinte, olhando pelas janelas do sétimo andar do pagode de porcelana construído sobre a colina artificial do jardim imperial, pôde ver a cidade iluminada, como por milhões e milhões de vagalumes diminutos a devorar a vasta escuridão, mas não soube jamais de que forma tinha sido gasto o milhão de taéis que orçara para aquele fim.

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