"FLANAR" EM VOLTA REDONDA

Não estou aqui reclamando da vida. Isso não é comigo. Aliás, na medida do possível, driblando um revés aqui, outro ali, minha vida até que é bem tranqüila... Mas que às vezes sinto falta de velhos costumes, ah! Isso é verdade...
Um exemplo de costume que me faz falta é o de “flanar”. Há algum tempo atrás, depois da leitura e da música, flanar era o meu passatempo preferido. Não perdia uma oportunidade e quando não as tinha, eu as criava. Qualquer hora do dia e da noite era um bom momento para flanar. Flanava de dia, à noite, de madrugada, de manhã bem cedo... Cheguei até a adaptar um velho ditado. Gostava de dizer que “Deus protege as crianças, os bêbados e os flaneurs.” Claro! Porque só pode ser obra do Divino o fato de eu nunca ter sido assaltado ou agredido nas tantas vezes em que flanava, por exemplo, às duas horas da manhã de um sábado, em plena Amaral Peixoto, observando jovens drogados e travestis bêbadas curtindo a “liberdade” que só a madrugada concede aos cidadãos urbanos... ou nas vezes em que saia de casa, insone, e flanava pelo bairro às três da manhã para procurar uma cerveja gelada na primeira bodega que encontrasse aberta...
Flanar é um costume antigo e característico de quem gosta de observar a vida nos centros urbanos. Baudelaire gostava de flanar em Paris. João do Rio dizia que “Flanar é vagabundear com inteligência”. Concordo plenamente. Só para ficar claro, flanar é o costume de andar pela cidade sem compromisso e sem destino certo, caminhar pelo prazer de caminhar, com calma, para pensar na vida, para observar e sempre se surpreender com os mais diversos tipos e situações que encontramos pela frente (nenhuma relação com essa caminhada emburrecida que os médicos recomendam, onde as pessoas parecem autômatos com seus fones de ouvido e cara de insatisfeitos). É observar uma humanidade nua e crua, sem trejeitos impostos por convenções sociais determinadas por ambientes fechados, como shopping centers, onde todos ficamos parecendo vaquinhas-de-presépio, bois no matadouro ou burros em currais... É olhar o homem urbano em seu habitat natural, ou seja, nas ruas das cidades, onde é possivel ver de tudo e aprender com tudo.
Nessas minhas andanças, e não foram poucas, já vi de quase tudo. Já flanei pelo Rio de Janeiro, do centro à zona sul vendo coisas que só o Rio tem, já flanei em São Paulo, mais precisamente em São Bernardo do Campo, cidade com pressa e gente na rua vinte e quatro horas por dia. Aqui nessa região, quase todas as cidades já foram alvo do meu flanar: Piraí, lugar gostoso para andar durante o dia; Angra dos Reis, cais do porto com chuva fina e uma parada para tomar cachaça, batendo papo com os pescadores e aprendendo sobre como vencer o mar em pequenas e precárias embarcações; Resende, cidade estranha e organizada demais, parece mais ser de São Paulo do que do Rio; Barra do Piraí, a decoberta, em frente ao Colégio Barão do Rio Bonito, de um marco histórico da visita de Dom Pedro II, que contém lacrada em sua base documentos com reflexões da juventude barrense de 1920 para a juventude barrense de 2020; Barra Mansa, com seus pequenos becos e ruas estreitas que escondem botecos que parecem ter sido congelados no início do século e descongelados agora; e Volta Redonda, minha terra e meu lugar favorito para flanar, tanto de dia quanto de noite, onde sempre andei despreocupado pois, apesar de saber dos perigos, me sentia sempre em casa, entre amigos e conhecidos...
O flaneur, para ser bom no que faz, não pode ter preconceitos nem reservas de estar onde quer que esteja, conversar com mendigos, com prostitutas, com alcóolatras, entrar em sessões de Umbanda, em belas igrejas, em festas populares, tentar compreender as gírias da rapaziada do morro, entrar em rodas de samba nos botequins-pé-sujo no Aterrado, fazer amizade com os hippies-rastafaris que vendem astesanato na Vila, conhecer comunidades que ninguém se interessa em conhecer, como os moradores espremidos entre o pátio da rede ferroviária e a CSN, em frente à rodoviária, e ser recebido com alegria pelas pessoas, que se sentem isoladas da cidade, é se indignar com a violência da polícia contra os meninos de rua em baixo do viaduto Nossa Senhora das Graças e voltar para casa chorando, é ver os playboys do Laranjal puxando cavalo-de-pau com carros do ano... em suma, é viver a cidade com o que ela tem de melhor e pior. É compreender o ser humano, com seus tesouros e com as suas misérias... e, o mais importante, saber tirar uma lição de tudo isso.
Flanando, aprendi a olhar a cidade além das aparências, além das convenções, saber que tudo tem um lado bom e um lado mau.
Mas o tempo de flanar já passou. Tantos compromissos, tantos afazeres, filhos para educar, uma companheira precisando da minha atenção e eu da dela... a Paulinha, aliás, chegou a me acompanhar em algumas incursões pela cidade, olhando a vida e conversando sobre ela... quem sabe voltamos a andar por aí um dia? Pois quem já flanou conservará para sempre o gosto por essa prática, ao mesmo tempo tão perigosa e tão saudável, mas que nos faz lembrar que estamos vivos e fazemos parte de um contexto, lembrar que a cidade respira, cheia de movimento, cheia de segredos prontos para serem revelados...
A humanidade é fascinante. O flaneur é um arqueólogo do presente, com a vantagem de observar o objeto de seu estudo não por evidências ou pistas, mas “in loco”.

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"Quando o processo histórico se interrompe... quando a necessidade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora é boa para abrir um bar."
W. H. Auden