A ÁGORA CARIOCA


(Publicado originalmente no jornal O Globo, edição de 4/6/2012)

Vivemos tempos de uniformização dos costumes, fruto do tal de mundo globalizado. Em cada canto desse mundaréu, ligado por redes transnacionais de telecomunicações, as pessoas assistem aos mesmos filmes, vestem as mesmas roupas, ouvem as mesmas músicas, falam o mesmo idioma, cultuam os mesmos ídolos e se comunicam em, no máximo, cento e quarenta toques virtuais. Nessa espécie de culto profano, em que a vida cotidiana é regida pelos rituais em louvor ao mercado que não é o de Madureira, o bicho pega e as ideias morrem, como outro dia morreu de morte matada o acento em ideia, sem choro nem vela e sem a dignidade de um samba do Noel.

Eu, que trabalho com adolescentes e adultos jovens, percebo que as crenças e projeções de futuro da rapaziada foram substituídas pelo pânico cotidiano - do assalto e das doenças, no âmbito pessoal, às catástrofes ambientais, na esfera coletiva. Cria-se uma lógica perversa: Como posso morrer de bala perdida, pegar gripe suína ou sucumbir ao aquecimento global, preciso viver intensamente o dia de hoje.

Ocorre que essa valorização extremada do tempo presente é acompanhada pela morte das utopias coletivas de projeção do futuro. Não há mais futuro a ser planejado. Somos guiados pelos ritos do mercado e abandonamos o mundo do pensamento, onde se projetam perspectivas e são moldadas as diferenças. Restam hoje, nesse desalento, duas tristes utopias individuais, em meio ao fracasso dos sonhos coletivos - a de que seremos capazes de consumir o produto tal, cheio de salamaleques, e a de que poderemos ter o corpo perfeito.

Transformam-se, nesse tempos depressivos, os shoppings e as academias de ginástica nos espaços de exercício dessas utopias tortas, onde podemos comprar produtos e moldar o corpo aos padrões da cultura contemporânea - o corpo-máquina dos atletas ou o corpo esquálido das modelos. É a procura da felicidade que não tem, como na esquecida e sábia canção natalina. E tome de caixinhas de Prozac no sapatinho na janela.

É aí que localizo, na minha cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, o espaço de resistência a esses padrões uniformes do mundo global: O botequim. Ele, o velho boteco, o pé-sujo, é a ágora carioca. O botequim é o país onde não há grifes, não há o corpo-máquina, o corpo em si mesmo, a vitrine, o mercado pairando como um deus a exigir que se cumpram seus rituais.

O boteco é a casa do mau gosto, do disforme, do arroto, da barriga indecente, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da festa do novo amor, da comemoração do gol, do exercício, enfim, de uma forma de cidadania muito peculiar. É a República de fato dos homens comuns.

É nessa perspectiva que vejo a luta pela preservação da cultura do boteco como algo com uma dimensão muito mais ampla do que o simples exercício de combate aos bares de grife que, como praga, pululam pela cidade e se espalham como metástase urbana.

A luta pelo boteco é a possibilidade de manter viva a crença na praça popular, espaço de geração de ideias e utopias - fundadas na sabedoria dos que têm pouco e precisam inventar a vida - que possam nos regenerar da falência de uma (des) humanidade que se limita a sonhar com o tênis novo e o corpo moldado, não como conquista da saúde, mas como simples egolatria incrementada com bombas e anabolizantes cavalares. O botequim é, portanto, o antishopping center, a recusa mais veemente ao corpo irreal dos atletas olímpicos ou ao corpo pau-de-virar tripa das anoréxicas, sintomas da doença comum desse mundo desencantado: metáforas da morte.

Ali, no velho boteco, entre garrafas vazias, chinelos de dedo, copos americanos, pratos feitos e petiscos gordurosos, no mar de barrigas indecentes, onde São Jorge é o protetor e mercado é só a feira da esquina, a vida resiste aos desmandos da uniformização e o Homem é restituído ao que há de mais valente e humano na sua trajetória - a capacidade de sonhar seus delírios, festejar e afogar suas dores nas ampolas geladas feito cu de foca. É onde a alma da cidade grita a resistência.

Esse combate, amigos, é muito mais significativo do que imaginam os arautos modernosos e seus programadores visuais. Botequim, afinal de contas, tem alma, é entidade, terreiro carioca, feito os trapiches e sobrados do cais do porto em noite de lua cheia.

Luiz Antonio Simas do Histórias Brasilieras

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